sábado, 6 de outubro de 2012

De repente olhou pro teto: branco, vazio, limpo. Quase minimalista com uma pequenina luminária discreta dependurada. Olhou pro chão: pilhas e pilhas de roupas sujas, livros espalhados, papéis esparramados pelo vento, lixo... Pensou que com muito pouco esforço poderia se tornar uma hoarder - acumuladores, acho que é esse o nome que dão em português, mas não me parece ter a mesma força, hoard me lembra os tesouros do dragões das histórias, tudo guardado como se fosse extremamente valioso... Sempre se perdia em digressões aleatórias, mas naquele momento, parou, olhou novamente para o teto e se sentiu oprimida, como se ele, com toda sua brancura minimalista estivesse ali pronto para esmagá-la. Queria fugir, mas para onde? O céu era ainda mais assustador que o teto, muito azul, muito limpo, muito claro... tinha mais medo da luz do sol que de ser esmagada pelo teto. Tinha vários medos, fobias, disseram os médicos: de lugares fechados e apertados, mas tinha mais ainda de espaços amplos e abertos; de desconhecidos, mas também de qualquer um que soubesse qualquer coisa a seu respeito; de todo tipo de animal, de microrganismos, de ruídos, de vozes... Cada lágrima que escorria pela sua face parecia trazer consigo um novo medo, uma nova fobia. E ela já tinha chorado muito e não sabia ao certo se algum dia conseguiria parar. Foi perdendo a vontade de comer, já não tinha mais forças para se mexer, tudo era medo e lágrimas, toda sua energia era consumida ali. Há dias só se ouviam seu choro e seus soluços vindos do quarto, chamaram, chamaram e não tiveram resposta. Foi carregada sem resistir para o lugar onde ficou até o último de seus dias, um quarto com paredes almofadadas, onde obrigavam-na a comer e beber o mínimo para se manter viva, prolongando seu sofrimento. Pelo menos o teto também é acolchoado, pensou, talvez doa menos quando desabar em mim...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

De repente se sentiu só. Muito só. Tão só quanto qualquer criatura era capaz de se sentir naquele lugar escuro e cheio de gente que esbarrava nela. O cheiro de suor das pessoas de desodorante vencido e de perfume barato misturado aos hálitos quentes de todos aqueles desconhecidos deixava o ar saturado e quase irrespirável, tóxico. Por alguns segundos pensou se não era melhor quando o cheiro de cigarro mascarava aquilo tudo, mas logo afastou aquele pensamento, antitabagista convicta que era. A música alta, a luz era tão fraca que parecia rodeada por sombras, figuras disformes cuja existência só lhe parecia irrefutável porque a tocavam a todo momento, empurrando-a pela pista de dança. Já não sabia mais se estava dançando ou apenas se deixando levar pelas danças alheias. Aqueles toques acidentais causavam-lhe um certo desconforto, quase uma ojeriza. Ouvia pedaços de conversas destinadas a outros ouvidos interrompendo a música a que tentava desesperadamente se agarrar. O teto baixo, os sussurros, os vultos em sua volta, a dificuldade para respirar, tudo começava a parecer mais um pesadelo que realidade. Se perguntou se era assim que se sentiam as pessoas numa crise de pânico, mas apesar de tudo, estava extremamente calma. Havia um conforto estranho naquele desconforto. Não saberia explicar se perguntassem, mas não havia ninguém para perguntar. Era livre para não entender, para não saber, para não pensar. Sentiu algo molhado. Alguma bebida derramada que espirrou nela. Um arrepio, nojo, mas o que ficou foi a curiosidade. Que bebida seria aquela? De quem? Como fora derrubada? Avistou o banheiro não tão longe e achou que era melhor se limpar. Não que fosse possível conseguir muita limpeza naquele banheiro já usado por incontáveis bêbados. Aproveitou para jogar um pouco de água no rosto para aliviar o calor. Talvez fosse melhor sair um pouco em busca de ar fresco. Andando, sentiu um toque proposital. A mão na sua bunda. Ah, o ódio começou a esquentar seu sangue. Pensou ter ouvido um "Gostosa", mas já estava tão fora de si, que pode ter sido um delírio. Antes que pudesse pensar, sentou-lhe a mão na cara, mas não ficou por lá tempo o suficiente para ver a reação. Na verdade não viu nem o rosto do indivíduo. Foi embora se sentindo violada. Seu paraíso era justamente estar incógnita, sozinha, livre.

domingo, 9 de março de 2008

Não conseguia se decidir entre a discoteca no Hackesher Markt ou a em Prenzlauer Berg. Discoteca é como soava em sua cabeça a palavra Disko. Estava acostumada a pensar em boates, ou desde que se mudara para São Paulo, baladas. Discotecas soava tão antiquado.

A voz anunciou: "Nächste Station: Alexanderplatz. Übergang zu U2, U5, S-Bahn, Tram und Metro Tram". Desceria ali. O U2 a levaria até Prenzlauer Perg, o S-Bahn, até Hackesher Markt. Na verdade poderia andar até Hackescher Markt, mas àquela hora, no frio, preferia o trem. Acabou pegando o U2, que foi o que passou primeiro. Era sempre interessante andar nessa linha noite adentro. Estava sempre cheia de figuras interessantes. Naquele momento, havia um casal semi-adormecido em um sofá dentro do trem. Que tipo de pessoa carrega um sofá para dentro do metrô a uma da manhã?

Foi ali que se conheceram e a lembrança tomou conta de seus pensamentos. Pegou um trem de volta para Alexanderplatz. Lá tomou um S-Bahn para Friedrichshaim. Entrou em um Kneipe na Simon-Dach-Straße, bebeu para tomar coragem. Já nem sabia muito bem qual fora o motivo da briga, só sabia que queria vê-lo.

Tomou seu rumo em direção ao apartamento. Já estava na porta, criando coragem para tocar a campainha quando seu celular tocou. Era ele. Ele também queria sua companhia. A esperava com a mesa posta, vinho e velas. Passaram direto pela mesa, apenas seguiram pelo corredor sem uma palavra. Abriram a última porta à esquerda. Depois que a porta se fechou, só restavam os dois no mundo. Pelo menos até o amanhecer.

domingo, 29 de julho de 2007

Seria o primeiro casal da turma a se casar. Igreja cheia e enfeitada. Muitos rostos conhecidos e outro bocado que nunca vira antes. Era isso, estavam entrando na "vida adulta". Aquela turma dos tempos de colégio agora já contaria com pessoas cujo estado civil em instantes passaria de solteiro para casado.

O noivo parecia nem conseguir respirar direito, tamanha a tensão do momento. A noiva se segurava para não chorar. Não podia borrar a maquilagem. Os casais de madrinhas e padrinhos, obviamente seguravam-se para não rir da cara de tensão dos amigos. Certas coisas ainda demorariam para mudar, se é que algum dia mudariam. Quando o padre finalmente falou que podiam se beijar, foi quase como se a noiva fizesse respiração boca-a-boca no recém marido que ainda parecia ter dificuldades para respirar.

Todos saíram da igreja para a parte mais importante. A festa. Dança, conversa e bebida. Quando estariam todos juntos assim novamente? Aquelas pessoas que conhecera por apelidos muitas vezes toscos em tempos que já queriam parecer imemoriais frente às mudanças que vinham acontecendo agora eram engenheiros, advogados, dentistas, administradores, psicólogos, publicitários e terapeutas ocupacionais. Um ia virar padre. Outros iam trabalhar em outra cidade. Um resolveu começar outra faculdade, enquanto outro já estava beirando o jubilamento.
Naquele instante eram simplesmente bons amigos reunidos celebrando. Que importava o que viria depois? Ali não importava nada.

De repente a diversão fui interrompida por que a noiva bebeu demais e estava passando mal. Precisava que alguém cuidasse dela. Saiu carregada da própria festa. E foi quando soube que tudo continuaria bem. Certas coisas, nem o casamento mudaria.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Cresceu com um único sonho: ser cientista. Não sabia exatamente como seria, nem o que faria. Sabia que queria usar um jaleco branco de mangas compridas e trabalhar com tubos de ensaio cheios de líquidos borbulhantes e coloridos. Ouviu falar de um tal DNA e decidiu que queria trabalhar com ele. Ácido desoxiribonucléico. Devia ser interessante.

Diziam que era capaz de armazenar todas as informações de cor dos olhos, cabelos e pele; formato do rosto; altura; várias doenças, basicamente tudo sobre uma pessoa. E aprendeu que fazia tudo isso com apenas quatro letras - ATGC. Quando contaram que era possível fazer cópias de pedaços de DNA e sequenciá-lo, acreditou. Quando saiu do colégio já se considerava íntima, sabia que era formado por uma cadeia de um açúcar de cinco carbonos, uma base nitrogenada e um fosfato. Não que isso realmente lhe dissesse alguma coisa...

Na faculdade sofreu com o famigerado "mapa diabólico" nas aulas de bioquímica, mas a complexidade só aumentou seu fascínio. Gostava de coisas crípticas que precisavam ser desvendadas. Logo começou a abrir mão da maior parte do seu tempo livre pela chance de ficar em sua companhia no laboratório. Deliciou-se nas aulas de genética e adotou bactérias roxas como fonte do precioso material (que na verdade, quando podia ser visto, não passava de um projeto de gosma branca no fundo de um tubo.

Se as coisas já não iam muito bem com as extrações de DNA que insistiam em não funcionar, as PCRs só pioraram tudo. Elas deveriam ser o procedimento mais banal da biologia molecular, mas mais pareciam magia. Primeiro por que consistiam basicamente em misturar quantidades ínfimas, quase invisíveis de "água" e colocar numa máquina que esquentava e esfriava. Segundo, por que a coisa nunca parecia funcionar e cada um tinha a sua mandiga.

Quando uma colega perguntou na aula de BioMol a finalidade de um ingrediente aparentemente inerte, a professora mais séria que teve na faculdade respondeu: "Bruxaria. Ninguém sabe ao certo o que faz, mas depois que começaram a usar isso no meu laborátório o rendimento das PCRs aumentou muito e as que não funcionavam passaram a funcionar." Um amigo confessou que durante muito tempo as suas só funcinavam nas sextas-feiras à noite. Outra, que acendeu uma vela sobra a máquina de PCR e tudo começou a funcionar direito, depois de quase um ano de tentativas frustradas. Uns achavam necessário fazer companhia à máqina e até lhe contar histórias... Outros juravam de pé junto que elas gostavam mesmo era de solidão e que só funcionavam se não houvesse ninguém por perto.

Deve ter sido aí que a magia começou a se desfazer. Toda a graça da ciência sempre fora a certeza, a reprodutibilidade, a racionalidade. Aceitar que algo interferia num experimento sem que houvesse qualquer motivo para isso e não investigar a causa da interferência era simplesmente errado. E aceitar resultados que foram obtidos uma única vez, mas que ninguém nunca mais conseguiu repetir, também.

Então começaram os seqüenciamentos. Que também não gostavam de funcionar. Foram os DNAs de morcegos que foram seqüenciados e que o BLAST disse que eram DNA de humanos, golfinhos ou rinocerontes da Sumatra, tudo isso bem longe do mar ou da Ásia, que acabaram com tudo. Como seria possível que o DNA de animais quase extintos da Ásia fosse tão facilmente confundido com o de morcegos com os quais não tinham qualquer proximidade filogenética ou geográfica? Perdera a fé naquela ciência e teve que sair de lá correndo para não começar a chorar enquanto seu mundo desabava em seus pensamentos.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Estava em casa. Tudo parecia calmo. Calmo demais, na verdade. Devia ter percebido o prenúncio do que viria pela frente. O tempo foi passando arrastado até que o telefone tocou. Ouviu a voz de choro do outro lado e soube o que ocorrera, mas ainda sim, precisou perguntar. Precisava ouvir, ou não pareceria real. O que aconteceu? - disse. Eu preciso de você. - ouviu por entre as lágrimas. Sem pensar direito no que fazia juntou suas coisas e foi. Já estava do lado de fora da porta, quando se lembrou da barra de chocolate. Serotonina e endorfina sempre ajudam nessas horas. Correu até o balcão e pegou o doce (que na verdade era meio amargo, como gostavam) e guardou na bolsa. Não sabia bem o que esperar, o que diria nem faria ao chegar, apenas entrou no carro e dirigiu desesperadamente ao lugar em que nunca antes estivera. E deveria ter estado várias vezes por outros motivos, mas simplesmente nunca fora lá. Buscou uma vaga para seu carro. A tensão já era tal que mal conseguia manobrar. O mais difícil era controlar a embreagem, tanto que lhe tremiam os pés. Estava lá, mas não sabia bem para onde ir agora que chegara. Pegou o telefone e ligou, esperando instruções, mas principalmente que sua suspeita fosse falsa. Vou aí te buscar - disse a voz no telefone. As portas do elevador se abriram, seu olhares se cruzaram. Logo se abraçaram e começaram a chorar. E não foi preciso dizer mais nada.